A HORA DE LUZ NA PRISÃO

Nessa hora, a transparência invade os olhos e derruba as grades da cela. Suspende, por um instante, a vida do cerco.  Nesta interrupção da escuridão que ocupao corpo atado, torna-se possível sonhar. Esse momento faz um humano acontecer. Afinal, “Nesta terra há coisas que merecem viver… a hora de sol na prisão.”

Os versos do palestiniano Mahmoud Darwish citados aqui abrem a porta a uma lista de coisas que fazem a vida merecer ser vivida. Não é por acaso que o fotógrafo José Farinha escolhe, entre elas, a hora de sol na prisão para o título deste trabalho fotográfico. As suas imagens dizem que a ocupação da Palestina não interrompe o quotidiano do povo palestiniano. Antes pelo contrário, a ocupação é a vida, sendo esta interrompida por pequenos momentos que resistem àquele “normal” absurdo. Capturam um sonho de um sono curto. Mal se abre os olhos, acorda-se para a realidade: a ocupação está ainda aqui. Mesmo assim, as imagens também dizem, sem tremer, que os sonhos não são apenas sonhos: interromper a ocupação para fazer a vida acontecer é uma resistência e um poder.  

Este projeto fotográfico realizado na Palestina ocupada durante várias viagens ocorridas entre 2017-2019 reflete precisamente esta resistência-pela-interrupção. Ao fotografar a vida diária sem esconder a ocupação que está sempre presente como pano de fundo, o fotógrafo suspende a hora de sol na prisão, fazendo prolongar o sonho palestiniano de um quotidiano sem ocupação. 

Ao contrário da maioria das máquinas fotográficas bem-intencionadas que viajam para a Palestina para mostrar ao mundo a verdade sobre a ocupação, capturando a destruição, o aprisionamento, as feridas abertas e a morte - muita morte -, José Farinha decide celebrar a vida. Mas a vida fala também do seu contraste, a morte, assim como, ao falar da hora de sol na prisão, o fotógrafo está a dizer prisão.

O caminho que José Farinha escolheu para este projeto não é fácil. Na Palestina tropeça-se muito facilmente na brutalidade da ocupação. É preciso procurar para conseguir encontrar a beleza no meio dos escombros. Talvez por isso as fotografias, na sua maioria, não sejam encenadas nem estáticas, são rapidamente raptadas da curta hora de sol na prisão, antes do quotidiano ser interrompido por mais uma investida da ocupação israelita. Ao mostrar esta hora de sol na prisão o fotógrafo questiona a narrativa israelita que desumaniza o povo palestiniano e que o retrata como terrorista, cuja vida não merece o choro quando é aprisionada.  As imagens revelam que o “inimigo” que Israel insiste em fabricar é, afinal, um balão a balançar o sorriso de uma menina, um copo de sumo a dançar na mão de um vendedor, uma romã a apanhar a calma das manhãs e um mercado a gritar cores nos ouvidos dos homens da cidade. O “inimigo” é, afinal, um ser humano que apenas procura as “coisas que merecem viver”.

As fotografias de José Farinha poderiam talvez trazer à memória uma das imagens icónicas da Palestina, da autoria de Alfred Yaghobzadeh, tirada durante a Primeira Intifada, a de uma mulher de saia travada e cachecol amarelo, descalça, carregando os seus sapatos de saltos altos, igualmente amarelos, numa mão, e lançando, com a outra, contra a ocupação, uma pedra simbólica. Parece que a sua hora de sol foi interrompida antes do tempo. A saia e os saltos altos são amarelos, como a hora de sol. Para ela são, como a pedra na sua mão, uma forma de resistência. Viver é uma forma de resistência. Da mesma forma, José Farinha não fotografou simplesmente um casamento, eleições universitárias ou mercados. Fotografou uma Palestina que acredita que “nesta terra há coisas que merecem viver”. Isto é obvio, por exemplo, na fotografia da menina Ahed Tamimi, cuja história foi conhecida amplamente no mundo depois ter sido aprisionada por ter esbofeteado um soldado que estava a disparar contra os habitantes da sua vila a partir da sua própria casa. No dia em que saiu da prisão, Farinha escolheu fotografá-la enquanto estava simplesmente a estar. Quando Ahed foi questionada sobre aquilo que a prisão lhe ensinou, respondeu: “a prisão ensinou-me a amar a vida”. Ensinou-lhe a amar a hora de sol.

A prisão é interrompida pela hora de sol. Parece que através do seu projeto o fotógrafo transmite esta mesma sensação da interrupção. Os momentos de rutura causada pela vida diária são retratados numa estrutura interruptiva: a imagem do caminho fechado por imposição militar é interrompida por um rapaz que insiste em andar de bicicleta, a imagem da brutalidade do checkpoint é interrompida por uma menina de cor de rosa que não receia parar e mostrar o seu vestido, óculos de sol e chapéu com muita vaidade. A ocupação é sempre interrompida pela resistência. Por mais que a ocupação israelita tente oprimir este povo para apagar a sua existência, ele aparece debaixo da escuridão da prisão, abre o olho e sorri para o sol. Apesar da destruição, da expulsão, do aprisionamento e da morte, ele decide mostrar a resiliência em viver. É esta a arma mais forte do povo palestiniano, a arma que mais perturba o ocupante. As fotografias de José Farinha são assim uma espécie de dança que interrompe o caixão. Assim, estas fotografias não são apenas retratos da interrupção: são, elas mesmas, uma interrupção, um acto de resistência.  

Shahd Wadi (@shahdwadi)